Introdução
O muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus) é considerado uma das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do planeta. Tem sua ocorrência restrita à Mata Atlântica e suas populações se encontram ameaçadas pela destruição e fragmentação do habitat e também pela atividade de caça (Mittermeier et al., 2005). Essa situação é considerada ainda mais crítica se levarmos em conta que a área de distribuição geográfica original da espécie se encontra localizada na região Leste do Brasil, onde as ações antrópicas foram mais severas (Mittermeier et al., 1989). Como se não bastasse, o muriqui é um dos mamíferos mais caçados nesta região, conforme relatos de caça recentes para o muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides, em Mittermeier et al., 1982; 1987; 1989; Mittermeier e Konstant, 1990; Auricchio, 1997) e para o próprio muriqui-do-norte (B. hypoxanthus, em Cosenza e Melo, 1998).
Apesar de ter ampla distribuição no leste brasileiro, são conhecidas populações de muriqui-do-norte apenas para Minas Gerais e Espírito Santo (Strier e Fonseca, 1996–1997). No estado da Bahia, os últimos registros feitos por Aguirre (1971) remontam à década de 60. Desde essa data, nenhuma população de muriquis foi confirmada no estado baiano, até o ano de 2004.
Desde 1999, o Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais e a Universidade Federal de Minas Gerais vêm desenvolvendo trabalhos de reconhecimento da fauna de mamíferos, considerando o grupo de primatas como indicador de novas áreas, nos vales do rio Jequitinhonha e Doce, visando preservar essa rica biodiversidade (Hirsch, 2003; Melo et al., 2002; Melo, 2004). Este estudo concentrado trouxe detalhes sobre os principais fragmentos florestais existentes nas referidas bacias e permite, hoje, direcionar recursos e esforços conservacionistas nas áreas apontadas como de importância para a conservação dessa fauna de primatas diagnosticada e, conseqüentemente, dos demais mamíferos e das demais espécies tipicamente florestais.
Concomitante a essas iniciativas, o Ministério do Meio Ambiente abriu um edital, em 2002, convocando instituições de pesquisa e ensino na tentativa de melhorar nosso conhecimento biológico acerca dos principais biomas brasileiros, baseado nos diversos workshops nacionais que foram realizados na última década e no início dessa (Brasil, MMA, 2002). A Conservação Internacional do Brasil associouse às principais instituições de ensino de nível superior do Estado (Universidades Federais de Minas Gerais e de Viçosa, Universidade do Estado de Minas Gerais, campus de Carangola e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas) e teve aprovada sua proposta de inventário da biodiversidade nos vales do Mucuri e Jequitinhonha, Minas Gerais e Bahia, nos domínios da Mata Atlântica e em áreas consideradas prioritárias ou que necessitam de maiores investigações científicas apontadas por Conservation International et al. (2000). Este inventário gerou novos dados de ocorrência para o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), que são aqui apresentados e discutidos.
No presente estudo e em trabalho prévio (Melo, 2004), foram enfatizadas amostragens nos fragmentos florestais localizados nas áreas consideradas prioritárias de número 213 (Vitória da Conquista/Jordânia, BA), 217 (Salto da Divisa, MG) e 221 (remanescentes da região de Teófilo Otoni, MG) do mapa “Avaliação e Ações Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade da Mata Atlântica e Campos Sulinos” (Conservation International et al., 2000). O número de fragmentos amostrados dependeu de uma análise de viabilidade feita com toda a equipe do projeto, envolvendo os demais grupos temáticos, após análise de imagens de satélite (escala 1:250.000). Aqui, são relatados apenas os resultados dos locais onde a presença do muriqui pode ser confirmada, quais sejam, a Reserva Biológica da Mata Escura, municípios de Jequitinhonha e Almenara (16°20′29.0″ Sul e 41°00′42.0″ Oeste) e a região da Fazenda Duas Barras, em Santa Maria do Salto (16°24′23.5″ Sul e 40°03′15.4″ Oeste; Figura 1) (mais detalhes abaixo).
Andrade (2004) caracterizou a região da Mata Escura com clima que corresponde ao tipo Cwa de Köppen, mesotérmico com verões quentes e estação seca no inverno. Nos pontos mais altos (1.100 m de altitude), o clima é mais ameno, tipo Cwb de Köppen, com temperaturas mais brandas (Andrade, 2000a). Já a Fazenda Alto Cariri, nos municípios de Salto da Divisa e Santa Maria do Salto, é caracterizada pelo clima tropical quente úmido com três meses secos. A área encontrase próxima a isoeta com 1.250 mm de precipitações e as chuvas distribuemse entre a primavera e o verão, sendo os meses de precipitação máxima entre dezembro e fevereiro (Nimer, 1989; Andrade, 2000b).
O levantamento de primatas que ocorrem nas localidades de estudo foi feito através de três métodos principais: 1) amostragens em transectos lineares (“censos”) conduzidas durante o período diurno e noturno para o registro de mamíferos de médio e grande porte; 2) uso de playback para a confirmação de presença de primatas; e 3) entrevistas com moradores locais, antigos caçadores e pesquisadores que já atuaram na área.
Os “censos” (line-transect sampling, Buckland et al. 2001) foram feitos em trilhas já existentes, bem como em bordas de mata e estradas de terra pelo interior dos fragmentos em dois horários principais, no início da manhã (06:00–10:00h) e no início da noite (18:00–22:00 h). Um mínimo de três censos diurnos e três noturnos foram realizados/fragmento/estação. O registro de mamíferos em geral foi feito através de observações visuais diretas ou através de vocalizações, pegadas, fezes, carcaças, pêlos, espinhos e demais vestígios encontrados. O ritmo da caminhada foi mantido o mais próximo possível de 0,5–1,0 km/h. O início e o término dos censos foram anotados, assim como a distância percorrida. As distâncias foram medidas através de aparelho de GPS. Nos censos noturnos utilizamos uma lanterna Maglite recarregável de 12 watts e Petzl modelo Duo. Todos os registros foram anotados em caderneta de campo previamente preparada, com espaços para hora, local, tipo de floresta, tipo de registro, e número de indivíduos. Adicionalmente, Melo (2004), além de entrevistas com moradores locais, utilizou insistentemente da técnica de playback, na tentativa de otimizar os encontros (Melo e Mendes, 2000).
O presente estudo foi realizado em quatro áreas dos 36 fragmentos florestais visitados por Melo (2004). Dos 167 km de censo e mais de 180 km de caminhadas percorridos, obtivemos apenas dois registros de muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus) num total de 74 avistamentos de primatas.
Melo et al. (2002) confirmaram a ocorrência de muriqui para a região da Mata Escura, hoje a Reserva Biológica Federal da Mata Escura, em Jequitinhonha, totalizando 14 indivíduos distribuídos em dois grupos sociais distintos. Mais recentemente, Melo et al. (in prep.) puderam confirmar o número total de indivíduos de um dos grupos vistos em 1999, que chegou a 25 animais, considerando adultos, jovens e infantes.
Apesar de terem sido raros os relatos referentes à ocorrência de muriquis no vale, esse registro no município de Jequitinhonha (REBIO Mata Escura) é de extrema importância, pois as populações consideradas relictuais de distribuição mais ao norte no estado de Minas Gerais eram as populações do Parque Estadual do Rio Doce, em Marliéria e da Fazenda Córrego de Areia, no município de Peçanha (Mittermeier et al., 1987; 1989; Strier e Fonseca, 1996–1997; Hirsch et al., 2002).
Em Agosto de 2004, durante censo realizado na Fazenda Duas Barras, municípios mineiro de Santa Maria do Salto e baiano de Guaratinga, pudemos confirmar mais uma população de muriquis para o vale. A confirmação dessa população traz um duplo significado para a conservação dessa espécie tão ameaçada, cuja população mundial não ultrapassa a cifra de 1.000 indivíduos de vida livre (Mittermeier et al. 2005), já que reforça a existência de mais uma localidade. Somada às demais, aumenta as esperanças de consolidação da luta pela preservação de seu hábitat e de sua sobrevivência em longo prazo. No caso específico dessa região, ambos os governos do estado da Bahia e de Minas Gerais podem somar esforços na tentativa de implantar uma Unidade de Conservação (UC) de proteção integral na área.
A presença do muriqui nessa região, além de ser uma confirmação obtida após cinco anos de busca por Melo (2004), merece destaque, pois pode ser considerada a primeira população de muriquis constatada para o estado da Bahia após as investigações pioneiras feitas por Aguirre (1971). Além desse avistamento feito, computamos diversos relatos fiéis da ocorrência da espécie para toda a região chamada de Alto Cariri. O grupo identificado apresenta pelo menos sete indivíduos e se encontrava em um grande fragmento de mata que abrange ambos os estados. A fazenda Duas Barras possui aproximadamente 1.200 ha de floresta primária e é contínua com os demais fragmentos florestais situados em todo o maciço da serra do Alto Cariri, que pode somar mais de 18 mil ha de mata em bom estado de conservação. Como metade dessa área se encontra em território baiano, temos uma situação singular onde encontramos espécies com suas distribuições alocadas em ambos os estados. Essa condição interessante sugere que podem existir outros grupos de muriquis ao longo deste maciço florestal, que inclui extensos trechos totalmente inseridos em território baiano, pois tivemos muitos relatos da ocorrência de grupos com mais de 30 indivíduos, tanto ao norte quanto nessa região central onde observamos o primeiro grupo de muriquis.
Em outro projeto de pesquisa, Melo et al. (in prep.) realizaram uma visita à Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Estação Veracruz, em Porto Seguro (BA), de acordo com informações de moradores locais que teriam vistos muriquis na área. Não obtivemos, porém, nenhum indício que pudesse confirmar sua ocorrência durante a visita feita, o que vem ratificar as informações de seu desaparecimento da Estação Veracruz e vizinhanças há pelo menos 40 anos, motivado aparentemente pela forte pressão de caça na região. Aguirre (1971) aponta quatro localidades distintas, mas relativamente próximas à atual RPPN Veracruz, como áreas cujas populações de muriquis foram extintas no passado, incluindo o Parque Nacional (PARNA) Monte Pascoal e a Fazenda Pontal, em Itamaraju.
Um único relato obtido durante o trabalho levanta suspeitas recentes de um muriqui abatido por índios no Parque Nacional Monte Pascoal, há cerca de cinco anos. Embora remota, não se pode descartar totalmente a possibilidade de que uma população remanescente de muriquis ainda ocorra nas áreas deste PARNA.
O muriqui (Brachyteles spp.) não teve seu status de conservação, em Minas Gerais, avaliado como criticamente ameaçado, pois durante a análise da lista mineira da fauna ameaçada de extinção, esse táxon era considerado um gênero monotípico. A sua taxonomia foi revisada alguns anos depois por Rylands et al. (2000), onde houve separação em duas espécies (muriqui-do-sul, B. arachnoides e muriqui-do-norte, B. hypoxanthus). Tanto a lista nacional quanto a lista da IUCN trazem essa última espécie como criticamente ameaçada de extinção no Brasil e no mundo, respectivamente (Brasil, IBAMA, 1992; IUCN, 2004).
Comparando com o trabalho feito por Rylands et al. (1988) na região do médio Jequitinhonha, nenhuma das duas populações citadas nesta região por estes autores pode ser confirmada. Na Fazenda Ramaiana, em Joaíma (MG) (ponto 32 em Rylands et al., 1988), os moradores mais antigos informaram ter ocorrido muriqui na área, mas em tempos remotos. Muitas espécies da avifauna identificadas no vale do Jequitinhonha foram coletadas nessa localidade, sendo que registros históricos importantes, como do macuco (Tinamus solitarius), demonstram que a região sofreu intensa pressão de caça ou mesmo teve sua área de floresta tão reduzida que a espécie não subsiste mais (G. T. Mattos, com. pess.). Da mesma forma, B. hypoxanthus pode ter chegado a um número reduzido e o seu extermínio por caçadores pode ter selado seu destino, bem como na maioria dos fragmentos de mata primária relativamente grandes que foram detectados, mas que não deixam quaisquer indícios da presença recente da espécie. A segunda localidade, conhecida como Fazenda Nossa Senhora das Graças (ponto 30; Rylands et al., 1988), tem possibilidades remotas ou sequer alguma possibilidade de abrigar populações de muriqui.
Relatos confiáveis da presença de muriquis foram obtidos na Fazenda Alto Cariri (16°18′53.8″ Sul e 39°59′42.4″ Oeste), situada mais ao norte da Fazenda Duas Barras, porém no município de Salto da Divisa (MG). A presença da espécie nesta localidade deve ser muito provável, já que essa área é contínua com a mata da Faz. Duas Barras onde os muriquis foram vistos.
Há outro fragmento florestal situado na Fazenda Avenida (15°47′44.0″ Sul e 40°32′55.0″ Oeste) divisa de municípios de Bandeira e Jordânia, em Minas Gerais, com Macarani e Maiquinique, na Bahia, uma área que também possui extensões consideráveis de mata e que se encontra em excelente estado de conservação. Todas as visitas feitas por Melo (2004), este estudo e por Melo et al. (in prep.) não puderam confirmar a presença de muriqui nessa área, apesar de termos obtido entrevistas relatando a sua ocorrência. Entretanto, consideramos que a localização de novos grupos de B. hypoxanthus não deve ser descartada e que estudos futuros sejam priorizados na área.
Uma terceira área visitada e que nos levou a conhecê-la foi exatamente a indicação, pelo seu proprietário, de que a Fazenda Limoeiro (16°02′57.0″ Sul e 40°51′02.0″ Oeste), em Almenara (MG), abrigava grupos de muriquis. Isso se baseou em relato feito por um morador local que disse ter abatido um indivíduo adulto de muriqui. Porém, em nenhuma das duas visitas realizadas na área foi possível confirmar a ocorrência desse táxon (14 a 18 de novembro de 2003 e 20 a 24 de abril de 2004). A área de mata é grande (mais de 9.000 ha), existem grotas extensas bastante íngremes e de difícil acesso. Mesmo assim, há uma constante retirada de madeira, o que nos leva a crer que a espécie, se de fato ainda subiste no local, está no limiar da extinção.
A redescoberta de grupos de animais de espécies de mamíferos de grande porte, como o muriqui-do-norte, reforça a necessidade urgente de se conhecer melhor as áreas visitadas com relação aos demais elementos da biota regional e exige uma ação imediata dos governos estadual e federal na conservação dessa biodiversidade, já que a caça predatória, o fogo constante e a retirada de madeira são ações de deterioração permanente nessas áreas.
Acknowledgments
Especiais agradecimentos aos financiadores desse trabalho, como o Instituto Estadual de Florestas, a Margot Marsh Biodiversity Foundation, a SEMAD-MG, o PROBIO/MMA, PG-ECMVS/ICB/UFMG, US Fish & Wildlife Service, o CNPq através das bolsas de estudos concedidas e a Conservação Internacional do Brasil. Aos demais parceiros de equipe do PROBIO (Rômulo Ribon, Renato Feio, Luciana Nascimento, Alexandre Salino) e do IEF (Denize F. Nogueira e Priscila M. Andrade). Ao prof. Anthony Rylands pela credibilidade e incentivo durante o doutorado de F. R. Melo. Agradecemos aos alunos da UEMG/FAFILE de Carangola por ter nos ajudado durante a campanha da Faz. Duas Barras, Érica dos Reis Rodes, Marcello Silva Nery e Sílvia Lucília Fonseca de Souza, através do projeto financiado pela Fundação Biodiversitas e CEPAN (028M/012004). À Maria Elisa Castellanos-Solá pela idealização do trabalho original e ao técnico do IEF local, Giovani Alves de Moura, pelo auxílio de todas as horas e apoio às missões empreendidas. Ambos tiveram papéis cruciais no desenvolvimento das pesquisas científicas que vêm ocorrendo no vale Jequitinhonha desde 1999.
Referências
Notes
[1] Fabiano R. Melo, Michel B. Faria, Fernando S. Lima, Daniel S. Ferraz, Ciências Biológicas, FAFILE/UEMG, Campus de Carangola, Praça dos Estudantes 23, Santa Emília, Carangola 36800-000, Minas Gerais, e-mail: <frmelo@carangola.br>
[2] Fabiano R. Melo, Centro de Estudos Ecológicos e Educação Ambiental, Rua Caparaó 122, Centro, Carangola 36800-000, Minas Gerais